7h50
Uma criança grita: Bisaaa, Bisaaaa, durante cerca de cinco minutos. Bate numa porta (da casa, do quarto?). Vem de fora.

Estou com pessoas em casa. Pela janela, alguém cai. Finjo não ver.

A criança continua gritando: Bisaaaa. Estou na cama e não quero sair. Tenho curiosidade, mas ainda não dormi o suficiente.

O celular vibra pela chegada de uma mensagem. Leio, uma amiga diz: minha cor na quarentena é o azul. Volto à cama.

Resolvemos ver a janela: uma moça se retorce no telhado da garagem, de qual andar terá caído? Continuamos no apartamento. Fico inquieto. Ajudar ou ignorar? Pego o telefone, não sei se o número dos bombeiros é 199, 190 ou 911. De qualquer forma, não consigo digitar os números ou sequer desbloquear a tela de proteção do celular. É normal, nos sonhos, não conseguirmos fazer coisas básicas: Alguém nos persegue com uma faca, não conseguimos correr. Parece que estamos presos. Olho a janela, a moça está quase caindo do telhado no chão da garagem.

Os gritos de Bisa continuam, mas são mais esparsos. E o “i” agora é mais prolongado e meloso. Uma voz de mulher (a mãe?) fala, aparentemente do mesmo local da criança. Sua fala é normal, dá instruções, não parece estar preocupada com os gritos. Me tranquilizo. De qualquer forma, não saio da cama.

A moça caiu. Desço até a garagem, uma senhora idosa está ao lado dela, tento perguntar se já chamou a ambulância. Não sei se ela me respondeu. Consigo ligar para 190. Uma voz feminina atende, mas não consigo me comunicar, meu celular está conectado ao aparelho de som via Bluetooth, que está no apartamento, e não consigo desconectá-lo. Olho para o meu apartamento. Acima dele conto 12 andares. Estranho, só há seis andares no prédio onde moro.

Levanto, não há nenhuma mensagem da amiga no celular. Nenhuma referência à cor azul em nenhuma rede social dela.

10h30
Levanto para tomar o remédio contra a hipertensão. Adquiri a mania de me pesar todo dia quando acordo: 79,3. Depois de urinar, me peso novamente: 78,9. 400ml de xixi hoje.

10h50
Chove. Não faço exercícios físicos, não acordei às 8h30 para o café da manhã saudável, não comi frutas. Mas tomei café: “café não costuma faiá”.

11h20
Eu deveria aproveitar o dia de sol para caminhar na garagem do prédio. Minha pressão hoje está boa, 12 por 8. Ligo o computador: home office.

11h20
Amanda está em casa essa semana. Está na trigésima semana de gravidez. As consultas de todos os médicos foram canceladas. A obstetra testou positivo. Nosso plano de saúde não aceitou o pedido digitalizado de ultrassonografia. Conseguimos uma consulta para daqui a duas semanas, com outra obstetra, a que não escolhemos no início da gestação. Não acordamos cedo o suficiente para a combinação 15 minutos de sol + café + caminhada + exercícios. Optamos pelo café e pela caminhada na garagem, que já garante a vitamina D diária.

11h30
Chegou o colchão. Tudo vai chegando aos poucos pelo correio. Fraldas, cadeirinha de descanso, sling. Tem muita gente trabalhando e se expondo para que os que podem ficar em casa fiquem em casa. Trabalho essencial, gente essencial. Certos privilégios me deixam triste.

12h
Hoje é dia de ir ao mercado. Ainda não tenho máscaras. Farei uma compra grande, amanhã vou buscar Amanda. Com ela me animo a fazer a comida. Ontem e hoje acabei pedindo por aplicativo. Dou gorjeta aos entregadores achando que isso vai me trazer algum alívio. À noite farei o básico: um macarrão com molho de tomate e atum enlatado.

12h20
Enquanto trabalho, escuto música: Joan Baez.

13h30. Hoje almoçamos bem. A carne com abóboras que fiz estava muito boa. Amanda fraturou o punho e não pode me ajudar na cozinha. Ela se sente inútil por não poder ajudar nos afazeres domésticos. Ela está gestando uma vida!

15h
Reuniões por skype, zoom, whatsapp. A reunião acaba e o microfone continua ligado em segundo plano. Vá até as configurações, procure a opção permissões e desative microfone para os aplicativos que desejar.

16h30
Live no instagram com enfermeiras obstétricas. Tema: amamentação do recém-nascido. É um mundo novo dentro de outro mundo novo. Chega a entrega da drogaria: meu remédio para controlar triglicerídeos altos e o óleo contra estrias de Amanda. A barriga dela está linda. Tiramos a foto do sétimo mês para pôr no app.

16h40
Hoje precisamos sair para uma consulta com obstetra. Vê-se que mais pessoas estão usando máscaras, mas as ruas continuam mais cheias de gente do que deveriam. Não pude subir com Amanda ao consultório e nem mesmo esperar na portaria do prédio. Fiquei do lado de fora, próximo aos fundos de um shopping, onde havia muitos entregadores de comida por aplicativo. A maior parte usava máscaras. Dois entregadores estavam sentados no chão e comiam hambúrgueres. Outro, montado em uma bicicleta de aluguel, olhava o celular a espera de uma entrega. Muitos conversavam. Ouvi dizer que os entregadores não ganham sequer a bolsa na qual levam os alimentos. Eles a recebem e o valor é descontado das entregas. Amanda retornou e parecia aliviada. Tudo normal para a trigésima terceira semana.

17h25
Tenho tirado fotos diárias do apartamento. Sempre duas. Uma na sala, onde busco enquadrar de longe a janela e pegar boa parte da sala. A outra na janela da área de serviço, para pegar apenas o exterior, onde é possível ver ao longe o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor.

17h30
Aliás, neste horário, agora que é outono, a vista da janela é muito bonita. Ainda não escureceu completamente, mas as luzes da cidade já estão acesas. E o céu apresenta no mesmo campo de vista o azul profundo do infinito e o vermelho rasgante do sol poente. As poucas nuvens, quando muito brancas, dão detalhe sofisticado à imagem.

17h37
Uma amiga diz que não se pode dar créditos a quem está enlouquecendo agora. Só merece respeito quem já era louco antes.

18h
Uma das minhas maiores diversões é a chamada em vídeo que faço com minha sobrinha, Bebel. Contrasta o ambiente fechado do meu apartamento com o quintal da casa dos meus pais, por onde ela corre e perturba o coitado do Pepe, nosso cãozinho. Gosto de ver toda aquela agitação. Às vezes peço a ela para andar pela casa, ir à varanda, ao meu quarto, pegar um livro ou um brinquedo. São momentos divertidos. Vejo também minha irmã, meu pai, minha mãe e minha tia. Lá, o isolamento está mais leve.

18h
Fiz o café da tarde. Me distraí lendo alguma coisa e o café esfriou. Requentei, bebi uns goles, me distraí e deixei esfriar novamente. Bebi o resto em um gole só, terrível.

19h02
Tenho tentado algumas receitas culinárias. Minhas composições salgadas costumam dar certo, mas as doces falham horrores. Não consegui acertar até hoje o bolo de cenoura e queimei toda a crosta crocante da cuca de banana. A cuca tenho comido ainda assim toda manhã e ela parece interminável, o bolo de cenoura só desceu enquanto estava fresco e com a calda de chocolate (esta salvou a obra do fracasso total). Uma observação: meu feijão é sem graça, não consigo resolvê-lo… Observação 2: arroz integral temperado com açafrão fica uma beleza!

20h30
A família Bolsonaro tenta fugir do Brasil, mas é interceptada pela Polícia Federal em uma ação transmitida ao vivo para todo o país. O rosto do bozo pai é enquadrado pela câmera da TV em imagem de alta definição enquanto sirenes policiais e hélices de helicóptero compõem o som da cena. Penso nisso enquanto ouço William Bonner traçar uma linha do tempo de boçalidades faladas pelo infame presidente apenas nas últimas semanas. Também não gosto do Willian Bonner.

21h
Sempre aceitei que só conseguiria ler os livros da estante no dia em que eu pudesse ter muito tempo livre para a atividade. Achei que este seria o momento, mas tudo na estante parece tão distante. A narrativa da vida real hoje parece suplantar as obras de ficção e as obras críticas também vêm quase instantâneas. Fico imaginando como as futuras gerações lerão os dias de hoje.

21h
Minha filha nascerá em junho. Não poderá receber visitas na maternidade ou em casa, e já estará sujeita aos protocolos de distanciamento social desde o primeiro minuto de vida. Estamos muito ansiosos para ver seu rostinho. Já tem mais de um mês que não fazemos ultrassonografia. O berço já foi montado, temos fraldas, lenços, roupas, lençóis, sabonetes, pomadas. Minha filha se chamará Luísa.

21h20
Há um inseto que anda há dois dias pela parede da sala. Não me movimentei para retirá-lo. É uma presença viva. Algumas vezes acompanho sua caminhada aparentemente sem rumo. Outras vezes o procuro e não o acho. Ele é verde, tem antenas e é quase totalmente composto por linhas retas. Se Amanda estivesse em casa o coitado não estaria aqui pra contar história.

22h45
Fui para a janela terminar o domingo a olhar as janelas vizinhas, ver se ainda tinha gente acordada. O que vi foi um grande lastro de fumaça que vinha por detrás de um prédio um pouco mais distante. Descobrirei no dia seguinte se tratar da casa de uma senhora que, segundo relatos, acumulava quinquilharias em sua residência e vivia com algumas crianças. Nas redes sociais comentários cristãos dirão: colheu o que plantou. Tempos sombrios.

23h50
Não vou falar sobre os tiros que costumamos ouvir daqui. Mas lamentavelmente tenho que dizer que jogamos mais da metade do bolo de cenoura no lixo!

23h59
O quarto é um lugar para onde só vou na hora de dormir. Meus dias são todos entre a sala e a cozinha. Faz um friozinho muito bom à noite e podemos deixar a janela aberta, pois moramos em um andar alto. Uma luz muito brilhante que vejo no céu não poderia ser uma estrela: é um satélite do Elon Musk. Penso em coisas que gostaria de escrever, mas é eu bater na cama e apagar. De manhã acordo com o sol queimando minha perna ou com a sinfonia de calopsitas de uma vizinha que sabem até cantar o parabéns a você.








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